quinta-feira, 23 de maio de 2013

Entrevista com João Sebastião Barros


João Sebastião Barros é um artista matogrossense que há quarenta anos imprime nas telas que pincela o Brasil dos rios e das chalanas, das religiões e dos santos, dos animais e dos homens. Sobretudo, o Brasil da onça-pintada e do caju – signos que permeiam a sua criação e lhe são característicos. Nesta entrevista, a escolha destes símbolos sugere uma ligação íntima à memória afetiva das esculturas que sua mãe preparava em ocasiões especiais, na qual retratava os elementos de sua vivência cotidiana em Coxipó da Ponte, onde moravam. Por outro lado, é revelada a identificação pela busca de uma brasilidade estética da primeira fase do modernismo no Brasil, especialmente na influência que tem do trabalho de Tarsila do Amaral. Mas engana-se quem pensa que seu olhar restringe-se ao regionalismo expresso em suas obras. O caminho do ofício de João Sebastião é inerente à sua vida e transita pela admiração à arte surrealista, ao realismo mágico, à Pop art, e tudo que lhe seja novo. “Eu pinto em função de um conteúdo ou um conceito que tenho assimilado aqui e ali. E assim eu vou caminhando na Arte”, ele diz. Acima de tudo, traduzindo-se nas obras que produz. O mural acima é composto por obras de João Sebastião Barros.

1. Quais os primeiros contatos que você se lembra de ter tido com a arte como espectador(a)?

Vim ao mundo em 1949, puxado pelos pés. Devo tudo à minha Mãe. O fator primordial, básico, o primeiro contato em si, ocorreu em casa, pois a minha mãe, dona Alexandra Barros da Costa, era artista inata. Mamãe dedicava-se a fazer, com arte, as figuras natalinas para comporem, ou ornamentarem, o nosso presépio. Nessa época ainda não se encontravam figuras em gesso. Além das peças tradicionais da liturgia católica, cristã, como Nossa Senhora, São José, Os Três Reis Magos, ela agregava os elementos da cultura pantaneira, como touros, cobras, burros, jacarés, jabutis, os quais serviam para enriquecer, regionalizar ou caracterizar as figuras da nossa realidade brasileira-matogrossense. Sobretudo, o mais interessante é que ela modelava em barro cru as figuras características da localidade do Coxipó da Ponte – lugar pequeno onde morávamos. Fazia parte do presépio a figura do açougueiro, a mulher socando pilão, o casal de namorados sentados no banco da praça, o guarda civil, a lavadeira com a bacia na cabeça. Personagens do nosso dia-a-dia! Também as pessoas proeminentes que habitavam aquele lugar mágico onde todos se conheciam eram retratadas naquele grande palco. Os nossos vizinhos reconheciam-se. Daí origina-se a minha capacidade de apreender com facilidade tudo aquilo que é característico, genuíno, assim como os elementos inerentes nas coisas – o que está ligado à expressão cultural de um grupo social. Isto eu aprendi em casa, diante da figuração do presépio feito pelas mãos hábeis da minha saudosa mãe. Eu tinha seis anos de idade quando pedi à minha mãe a sua permissão para que pudesse ajudá-la a pintar as suas figuras de barro cru – com as cores que se encontravam nas suas latinhas de esmalte. Ela permitiu. A partir daquele momento nunca mais fiz outra coisa na vida além de pintar. Nosso presépio era visitado pelas pessoas que moravam naquela localidade. Coxipó da Ponte era uma aldeia naquela época, hoje é um dos maiores bairros de Cuiabá. A mamãe fazia estas proezas desde o seu tempo de menina. Acredito que ela tenha sido contemporânea do Mestre Vitalino. Mamãe nasceu em 1915, além de ser uma boa dona de casa, fazia bonecas de pano, costurava pra casa. Fazia as minhas camisas e as roupas das minhas irmãs. Ela era prestimosa. Mulher linda, generosa e nobre. Herdei dela o seu jeito doce e gentil com as pessoas. Sou um homem delicado, no andar, no falar, e no tratamento com quem me trata bem. Sou trabalhado na Arte desde os seis anos. Depois vieram os lápis de cor, e aos dez anos eu já fazia aquarela. Aos doze eu já era um pequeno artista, e desfrutava do meu atelier no fundo do meu quintal, debaixo de um pé de mangueira. Aos treze anos meu pai, João Francisco da Costa, permitiu que eu me dedicasse a essa vocação, sendo que, para isso, não poderia contar com ele. E até hoje eu me viro para manter meu ideal de ser um Pintor, hoje um Artista Plástico. Outro fator que pesou muito foi o pessoal. Está adstrito ao meu perfil e é secreto. É, portanto, o condimento, o tempero alquímico e necessário às composições metafísicas, ou alegóricas do meu sentir e pensar Arte!

2. Qual a sua formação?

Eu sou autodidata. Não concluí a minha formação acadêmica. Tenho apenas o segundo grau. Creio e pratico a Ciência do autoconhecimento. Entretanto, quando eu estava com quatorze anos, procurei o auxílio de uma professora de pintura, pois me fora despertada a vontade de fazer pintura a óleo. Com a professora Bartira de Mendonça aprendi a técnica de como desenvolver esta Arte. Não foi difícil alcançar êxito, pois sempre fui bom em desenhar qualquer coisa visível e também elementos de imaginação.

3. Quando e como lhe ocorreu ser artista? Houve um momento no qual esta foi uma intenção clara ou foi algo que aconteceu?

A partir do momento em que já pintava cópias, como retratos, casarios, paisagens. Sobretudo através da leitura especializada. Sempre gostei de ler. Com esse procedimento precoce, encontrei o conhecimento da então chamada Arte Moderna, através da revista O Cruzeiro e Manchete. Através dessas revistas, tomei conhecimento da obra de Tarsila do Amaral, de Portinari, do Ismael Nery, e de outros. Fiquei convencido da possibilidade de expandir minha consciência de adolescente, mas que precisava sair urgente de Cuiabá e rumar para a cidade do Rio de Janeiro – onde eu tinha parentes em Niterói. Saí de Cuiabá com a idade de 16 anos, assim que terminei meu curso ginasial.

4. Você pode nos contar um pouco da sua carreira?

Cheguei ao Rio de Janeiro em 1967, e fui procurar com um amigo de um amigo que poderia me hospedar. O cara morava no Flamengo, mas ao me vir ele me deu o fora. Assustou-se com a minha figura. Eu era cabeludo! Fui baixar em Niterói e pedir asilo na casa de parentes. Nessa época eu usava os cabelos bem compridos. De imediato, o meu primo, católico, me levou ao barbeiro e mandou cortar a minha vasta cabeleira. Essa era a condição para que eu permanecesse morando com eles, que moravam a duas quadras da Praia de Icaraí. Imagine só a beleza do lugar, tendo a frente a paisagem do Rio de Janeiro, no lado oposto. Minha figura física fora mudada para agradar aos parentes. Isso não me custou nada, pois eu continuava um jovem bonito, cheio de vontade de aprender coisas novas. Dei início à minha carreia na cidade do Rio de Janeiro. Visitava os museus, as primeiras galerias, a Academia de Belas Artes, as exposições, lia os jornais e as revistas. E sempre a buscar um caminho particular que demonstrasse a ousadia que viria a configurar o meu perfil, mais chegado a tudo que é novo. Avançado. Arrojado. A coerência é uma ciência, a qual me acompanha até hoje.

5. Quais artistas lhe influenciaram?

Tarsila do Amaral foi, e continua sendo, uma das musas inspiradoras. Ismael Nery eu amo até hoje. Porém, esta influência dava-se no campo espiritual. Eu sempre procurei me formar, numa visão aproximada aos artistas brasileiros, entretanto, o espanhol Pablo Picasso até hoje me deslumbra pela sua inteligência artística e os seus belos conceitos plásticos. Tenho admiração pela arte surrealista, onírica, pelo realismo mágico. Acredito que eu seja um eclético nessa área, pois não temo o novo. Gosto da Pop art, enfim, a fila anda e eu me renovo sempre. Gosto de ousar nos conceitos. Eu pinto em função de um conteúdo ou um conceito que tenho assimilado aqui e ali. E assim eu vou caminhando na Arte!

6. Quando passou a se considerar profissional?

Passei a me considerar um profissional, a partir da chegada dos prêmios de caráter nacional. Consegui colecionar seis deles, dentre os quais o Prêmio de Viagem no País, Salão Nacional, Funarte, no Rio de Janeiro em 1981! Tenho orgulho desse fato. Uma boa premiação fortalece o artista e dá sustentação à sua obra!

7. Qual era a ideia que você tinha da profissão antes de exercê-la?

Eu levava a vida de um esforçado admirador da Arte. Eu curtia e criava elementos novos de um dia pro outro, sempre baseado num conceito formulado dentro da minha pessoa. Jamais fiz algo copiando ou fazendo releitura de outro artista. Nesse sentido, eu causava ódio ou amor, simpatia ou antipatia, pois sempre fora uma pessoa cheia de si. Um ser insuportável. Até hoje eu sou assim. Um ser solitário. Um navegante.

8. Qual é a ideia que você tem da profissão hoje que a exerce?

Tenho a melhor impressão, pois eu venci na minha cidade, no meu país. Meu curriculum é bem extenso. Trabalhei muito por mim mesmo e pela arte do meu estado, Mato Grosso! Tenho um estilo próprio. Uma identidade de caráter autoral. Mas a rejeição pela minha pessoa, esta ainda me acompanha. Entretanto eu supero todas elas, e isto até me motiva a estabelecer novos conceitos plásticos!

9. Como é o seu dia de trabalho?

Eu trabalho à noite e durmo durante o dia.

10. Seu trabalho foi beneficiado com a internet e as redes sociais? Como?

Acredito que sim, pois a coisa rola mais rapidamente. Eu já era conhecido em vários lugares do Brasil por pessoas de todos os níveis sociais e culturais. Gente que eu nunca vi me escreve. Minha página no Facebook parece um "poleiro das almas" em nível de abertura. Gente de todos os níveis e intenções posta coisas boas e até ruins, mas eu sou aberto e democrático. Assimilo todos e todas as proposições.

11. É possível pagar as contas tendo a arte como ofício? Como você faz?

É possível, pois a fila anda e meu trabalho é carismático, pega geral. Homens, mulheres, jovens. Gente rica, classe média. Intelectuais, e até gente simples. Minha obra tem uma energia advinda do Universo feminino. É bem forte.

12. Como você acredita que será o futuro da sua profissão?

Acredito que meu trabalho está bem alicerçado, pois há quarenta anos eu mantenho e reformulo esta temática inspirada e conceituada num felino, chamado ONÇA-PINTADA. Minha obra tem função, aspecto e caráter autoral. Isto me facilita a desenvolvê-la. E me faz, cada vez mais, expandir a minha consciência. Acredito e creio nela porque sou dedicado, obstinado, insuportável nessa trajetória, nessa busca por uma visão plástica brasileira.

13. Fale sobre o que você gostaria do seu trabalho, mas nunca lhe perguntam.

Nunca me perguntaram como eu defino o meu trabalho. Ele levou quarenta anos para dar o resultado esperado e almejado, dentro das minhas próprias expectativas e possibilidades como artista brasileiro. Através dele eu me projeto como um pensador, antes mesmo de ser o artista, o pintor. Esta é a parte que mais aprecio como pessoa inteligente. Como Artista. Tenho autonomia. Posso deliberar com personalidade própria. Isso é muito importante ao exercício desta Arte tão formidável. Gosto de sentir que posso alcançar lares, pessoas de alto nível. Da elite intelectualizada. Fazer parte integrante da herança, da convivência das famílias. Não espero nada das instituições, pois eu me viro desde pequeno e só posso contar comigo mesmo. Sou um ser solitário e, dessa fonte, transmigro as fronteiras do espírito, e atravesso os universos da imaginação, da fantasia, da utopia... Sou um ser privilegiado. Vivo num espírito de liberdade, cujo modelo está pautado na percepção de uma Arte pura, contemporânea, sobretudo brasileira. O modelo sou eu!

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quinta-feira, 9 de maio de 2013

Entrevista com Roberta Estrela D'Alva




Meu contato com o trabalho de Roberta Estrela D’Alva se deu há praticamente um ano, quando havia chegado com grande antecedência e aguardava o início de um show no SESC Bom Retiro. Porém, o tempo que me sobrava pareceu pouco quando fui tomado por um evento extraordinário, pois era domingo e ele geralmente ocorre às segundas quintas-feiras de todo mês, do Zona Autônoma da Palavra - ZAP!, que acontecia na área central do prédio. Descobri tratar-se de um poetry slam, um concurso de poesia com influências do Rap e do Hip-Hop trazido ao Brasil pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (que, além de Roberta, tem como membros o DJ Eugênio Lima, Luaa Gababini, e Claudia Schapira), em que participantes de múltiplas proveniências que se inscrevem pouco antes do evento ocupam o palco em diversas rodadas para declamar suas criações que são avaliadas por um júri popular. Ela não apenas comanda a competição, como é poetisa e foi premiada com o terceiro lugar na Copa do Mundo de Slams, que aconteceu em Paris em 2012. Embora, além da poesia, seja envolvida com a dança, a música, e até a moda, ela se denomina atriz-MC, especialidades que lhe renderam o prêmio Shell de Melhor Atriz em 2012 pelo espetáculo “Orfeu mestiço – Uma Hip-hópera brasileira”, a primeira do gênero realizada no país. E que grande mestre de cerimônias! Sua energia, junto à música negra que o DJ Eugênio Lima toca, é contagiante... Impossível não se envolver e querer subir ao palco para poetizar as próprias palavras ou de outrem, como é possível em todo ZAP!, na uma hora em que o microfone é liberado, ou na competição que acontece em seguida, somente para textos autorais. Roberta Estrela D’Alva é Mestre em Comunicação e Semiótica, mas acredita que os verdadeiros Mestres são os da escola da vida. E certamente ela merece tal honra pelos treze anos de trabalho que vem realizando junto ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e os que ainda virão. Hoje é dia de ZAP!, vamos lá? O evento ocorre às 20 horas na sede do grupo, que fica na rua Dr. Augusto de Miranda, 786, Pompéia. Os créditos das imagens da artista seguem ao final da entrevista.

1. Quais os primeiros contatos que você se lembra de ter tido com a arte como espectador(a)?

Isso depende do que a gente considera arte, né? Eu tive uma avó que era uma artista nata, a dona Rosa. Ela fazia cabeças de areia na beira do mar, construía castelos, pontes. Ficar olhando aquilo, desde o começo, aquele monte de areia que ia pacientemente tomando forma, era lindo, era o êxtase pra uma menina pequena. E ela fazia cantando. Muitos artesãos fazem isso, né? Trabalham cantando, “fecundando o ato criativo”, como diria o Paul Zumthor. Tinha meu pai também, com o violão. Tocava Jorge Ben, Alceu Valença, Roberto Carlos e a gente ficava tudo ali em volta vendo, escutando e aprendendo. E tinha os discos também, aquela coisa não só da música, mas do vinil, da capa que é arte também. Acho que foram esses meus primeiros contatos. Eu  também fiz  ballet desde muito pequenina e lembro o fascínio que era ver as bailarinas mais velhas ensaiando, as que dançavam com bailarinos principalmente porque elas voavam. E teve o “Thriller” também... em 84 eu tinha 5 anos e lembro nitidamente do impacto daquilo, daquela música, daquela dança, do videoclipe. Aquela força que o Michael representava e trazia é uma memória muito forte.

2. Qual a sua formação?

Embora eu também faça trabalhos com música, dança e poesia, hoje eu digo que sou atriz–MC quanto tenho que preencher fichas por aí. (risos) Uma mistura de porta voz do teatro com porta voz do hip-hop.  Acho que tem duas linhas aí pra falar de formação. Na da formação “acadêmica” fiz escola de artes cênicas e tenho bacharelado em interpretação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, e recentemente voltei pra “acadimia”, defendi um mestrado na Comunicação e Semiótica da PUC. Mas acho meio engraçado esse negócio de “mestre”. Mestre pra mim é tipo o Mestre Irineu, a Tiche Vianna, meu pai que deu a volta ao mundo com 62 anos nas costas... umas pessoas que tem mais horas-palco, horas-voo, sabe? A outra linha é a das coisas que se aprendem na rua mesmo, sozinho, no auto didatismo, na transmissão oral de um pra outro,  na “school of hard knocks”,  a ginga,  o hip-hop. E não só isso, tem uma rede de conhecimentos estéticos, musicais, filosóficos que só a rua dá. É a “malícia do selviço” como dizia o seu Manoel, um pedreiro que trabalhou aqui em casa. (risos) Pouca gente sabe, mas quando eu tinha uns 18 anos eu trabalhei de go-go dancer. A gente era dançarina mesmo, não era stripper, dançava de roupa e tudo mais. Tinha mesmo que saber dançar bem e aguentar dançar até duas horas seguidas sem parar. Era a chegada forte do techno nos clubs em São Paulo, aquela cena clubber no B.A.S.E, no Floresta, no Tango Tango – e a gente dançava pra animar a pista. Eu cheguei a dançar em festas em Goiânia pra 4000 pessoas, lá no alto de um praticável. Foi uma experiência muito forte essa de trabalhar na night, lidar com essa exposição, tendo que lidar com as coisas que acontecem nesses ambientes. Isso dá um jogo de cintura e um “requebra” que eu nem te conto... (risos)

3. Quando e como lhe ocorreu ser artista? Houve um momento no qual esta foi uma intenção clara ou foi algo que aconteceu?

Eu sempre quis isso. Eu sempre tive uma necessidade de me expressar cantando, dançando, fazendo cena, me jogando e me estatelando no chão fazendo drama desde pequena. Essa intensidade chegava ser insuportável, pra mim e pros outros, coitada da minha mãe! (risos) O teatro é um alívio pra gente que é assim. Essa possibilidade de adentrar os portais da emoção, da representação com um fim definido. Acho que você para de “atuar” na vida e joga toda essa necessidade de expressão, essa angústia, essa alegria, essa sensualidade no palco, a serviço da cena. A arte é realmente uma bênção pra pessoas hiperexpressivas.

4. Você pode nos contar um pouco da sua carreira?

Eu comecei na escola e tive a sorte de ter um professor muito legal na época, que se chama Jaime Celiberto, um cara que me apresentou Brecht, música clássica, que achava realmente que o ator tinha que em primeiro lugar exercitar a inteligência, ser informado, ler. Foi uma sorte. Nessa época também eu escrevia na escola. Tinha um jornal e eu era uma das editoras, escrevi peças, músicas, tudo ali, do tamanho de uma menina de 11, 12 anos, mas tudo muito importante pra minha formação. Eu fazia colegial normal e junto um curso técnico de magistério. Queria ser professora. E é engraçado que de alguma maneira eu sou hoje porque vira e mexe eu tô dando aula de alguma coisa. Daí eu entrei na USP e fiz a escola de artes cênicas. Tenho grandes amigos dessa época até hoje. Foi o que mais valeu a pena. Isso, e ter trabalhado com a Tiche Vianna, que além de ter ensinado a Commedia del Arte, foi uma pessoa muito importante porque nos ensinou sobre a função social do ator, dessa profissão. Daí eu saí da USP e fiquei meio desiludida porque eu olhava as companhias e não sentia vontade de trabalhar em nenhuma delas. Não que elas fossem me chamar, mas não tinha nenhum tipo de teatro com o qual eu me identificasse. Até que a Luaa Gababini, com quem eu fazia umas performances num bar pra ganhar um troco, me disse um dia que estava num trabalho incrível com a Claudia Schapira, o DJ Eugênio Lima, e um grafiteiro, que era o Julio Dojcsar, no qual se misturava teatro com hip-hop... E eu “Quê?!? Teatro com hip-hop?!? Eu quero agora!”. Eu estava muito envolvida com a cultura hip-hop por conta do espetáculo que tinha feito com a Tiche Vianna na USP, tava frequentando a “noite black”, ouvindo rap pra caramba, era um sonho aquilo. Daí uma semana depois eles precisaram de uma atriz e eu fui lá fazer um “teste”. Isso foi no ano 2000 e desde então há 13 anos o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos que é a minha companhia vem desenvolvendo a linguagem que a gente chama “teatro-hip-hop”. Disso daí foram surgindo os “braços” e fui me interessando por outras coisas também, como é o caso dos poetry slams, batalhas de poesia falada que acontecem no mundo inteiro e que chegaram no Brasil pelas nossas mãos.

5. Quais artistas lhe influenciaram?

Vixe, muita coisa a gente vai comendo, sampleando pelo caminho, né? O Michael (Jackson) é um que não tem quem tenha vivido nos anos 80 e não tenha sido influenciado por ele. O Jorge Ben por causa do meu pai tocando. O Caetano. Teve uma época que eu e minha irmã ouvíamos muito reggae, Bob Marley, Ziggy, Alpha Blondie, UB40, Pato Banton... Teve um negócio na escola que foi divisor de águas pra mim – o Macunaíma, do Mario de Andrade, aquele jeito de escrever, aquele ritmo, foi uma influência muito positiva pro meu jeito de ver as coisas. Teve o mesmo impacto de quando mais velha li o Guimarães, o Grande Sertão! Foi uma época em que isso veio, junto com o Be Bop do Charlie Parker e os textos dos beatniks, o Jack Kerouak... Isso rachou o coco! Ah... Racionais MCs, né... Isso daí é uma ciência, uma paulada na cabeça a primeira vez que você escuta, e as outras também. (risos) O Mano Brown é ídolo máximo. Quem é fã é fã apaixonado. Acho que ele também se enquadra na categoria de mestre que eu falei na outra pergunta. O personagem mais marcante que eu fiz na minha vida, o príncipe Segismundo da Vida é Sonho, era inspirado nele. Racionais é influência 100%, depois deles tudo mudou. Pô, também o Spike Lee, o Kurosawa, o Nabokov, o Brecht, Shakespeare, são tantos... Dos mais de agora, tem o Saul Williams que é um cara que vem dessa cultura dos slams, a Fiona Apple que é uma cantora que que escutei muito... Ceumar, Red Hot Chilli Peppers! Escutei muuuiiiito também. E as coisas mais ligadas ao Hip-Hop, rap nacional e internacional dos anos 90, Arrested Development, rock, e as coisas mais pop Madonna, George Michael, toda a cena nacional do 80’s Legião, Ultraje a rigor...

6. Quando passou a se considerar profissional?

Acho que quando comecei a viver do meu trabalho. Quando  começamos a ter um espaço, a pesquisar periodicamente , a fazer espetáculos pelo Brasil e pelo mundo. Nós fizemos uma turnê de dois meses com o “Acordei que sonhava” pelo sul e nordeste do país. Isso daí dá uma força sem igual pra um ator, pra um artista. Depois mais um mês na Espanha. Você ser recebido por públicos diferentes do que está acostumada te faz crescer muito também nessa profissão. Te faz ter que se reinventar. É maravilhoso.

7. Qual era a ideia que você tinha da profissão antes de exercê-la?

No começo, quando eu era muito jovem, acho que tinha um deslumbre com a coisa da televisão. É muito forte essa cultura da novela no Brasil. Então tem um certo fetiche com isso, a novela das oito e tal... Daí teve uma fase radical depois que  entrei no Núcleo Bartolomeu. Teve até uma fase “televisão- nunca-nem-pensar”. Hoje já há equilibro maior nesse pensamento. Com o tempo você vai entendendo que o lance é o que você tem pra dizer. E conta muito com quem você vai trabalhar, é toda uma rede e os motivos pelos quais você faz isso ou aquilo são tão diversos, tão ligados ao momento pelo qual passamos, as motivações são tão internas e de cada um, que não dá pra julgar.

8. Qual é a ideia que você tem da profissão hoje que a exerce?

Ser artista, o ofício da arte como profissão é uma coisa muito intensa. Não que outras profissões não sejam, imagina ser médico, parteira, fazer nascer criança, por exemplo? É uma loucura. Mas acho que tem profissões que é aquilo: tem a hora do trabalho quando cê tá lá na “firma”, no consultório, no salão de cabelereiro e acabou, acabou, o fim de semana não tem nada a ver com aquilo mais. Acho que a intensidade da pesquisa na arte, da busca incessante por referências, respostas, a observação cotidiana das pessoas, da cidade não para nunca. Eu não sei, mas pra mim, e acho que pra maioria dos artistas, a arte e a vida andam muito misturadas, não tem muita separação. O que às vezes sinto que é até demais porque é bom pra cabeça dar um tempinho também. (risos)

9. Como é o seu dia de trabalho?

Na verdade, cada dia é um dia porque os horários são muito loucos. Não tem como acordar às 6 da manhã se você ensaia até às 3 da madrugada, por exemplo. Mas geralmente eu durmo tarde e acordo cedo. Muitas das coisas que escrevo e pesquiso são durante a noite.  De manhã eu acordo, faço umas saudações ao sol, medito um pouco e quando tô bem disciplinada faço exercício de voz. Daí vou ver email, essas paradas, e sempre é aquela demanda sem fim porque a gente ainda cuida de muitas coisas que não é só da área da cena, mas demandas financeiras da companhia, escreve projetos, corre atrás de grana. E vou pra sede do Núcleo, ou ensaiar ou fazer reunião. Mano, como a gente faz reunião nessa vida! (risos) E aí tem os livros pra ler, as coisas pra pesquisar, o ZAP! pra produzir e apresentar, as viagens de trabalho, os convites pra participar de outros projetos, gravações, entrevistas... Enfim, é tudo muito dinâmico.

10. Seu trabalho foi beneficiado com a internet e as redes sociais? Como?

Ah sim... Ele consegue chegar em muito mais pessoas. Alguma conexões que fiz, só foram possíveis por conta da rede. Por exemplo, há um tempo atrás o Emicida me chamou pra abrir o show de lançamento do disco dele por conta de ter visto no twitter um vídeo da minha participação na Copa do Mundo de Slam, em Paris. E muita gente que nem sabia quem eu era teve acesso ao meu trabalho, e ao trabalho do Núcleo pelas redes sociais também.

11. É possível pagar as contas tendo a arte como ofício? Como você faz?

Oscila muito. Isso é um ponto crítico. Até então deu pra viver, no Bartolomeu e nos trabalhos que faço independentes, com épocas melhores outras piores. Dá pra viver, mas a instabilidade é um negócio que desgasta muito, principalmente quando se tem um espaço e funcionários no final do mês, como é o nosso caso. Esse é um assunto que esse ano tem estado direto na pauta do Bartolomeu: como sair da “sobrevivência” e do risco e conseguir uma mínima estabilidade digna pra podermos criar e viver em paz e prosperidade.

12. Como você acredita que será o futuro da sua profissão?

Nossa! Eu espero realmente que eu esteja conseguindo realizar os projetos, tanto os do Núcleo Bartolomeu, quanto os meus pessoais . Eu tenho vários na gaveta, um monte de ideias, vontades. Mas falta tempo pra realizar. Esse é um lance que eu tenho estado mais atenta, como atuo em muitas áreas, teatro, música, hip-hop, a escrita, educação, o slam, há que se prestar atenção no que é prioridade no momento pra não se perder. E ver também o que o momento está pedindo, pois as coisas fluem muito melhor quando são mais orgânicas, quando estão sincronizadas com o que o momento está pedindo historicamente e pessoalmente. Tenho vontade de trabalhar com certos artistas que admiro também. Espero conseguir realizar esses sonhos muito em breve!

13. Fale sobre o que você gostaria do seu trabalho, mas nunca lhe perguntam.

Olha, de fato eu sempre dou um jeito de falar o que eu quero sobre o meu trabalho. (risos) Acho que gostaria de falar que sou muito feliz por ter a sorte de poder utilizar meus dons  tão plenamente na arte e também nessa linguagem que é o teatro  hip-hop. Esse foi um lance que criamos e tem me aberto muitas oportunidades em várias áreas relacionadas e que, além do teatro, me traz a sorte de trabalhar diretamente com a cultura hip hop, uma das paixões da minha vida!

Créditos das imagens utilizadas no mural (em sentido horário):

Imagem 01 - Marcio Scavone

Imagem 02 - Divulgação
Imagem 03 – Manu Costa
Imagem 04 - Tatiana Lohmman
Imagem 05 - Tathy Yazigi
Imagem 06 - Peetsa
Imagem 07 - Tathy Yazigi
Imagem 08 - Serguei
Imagem 09 - Aquiles
Imagem 10 - Fernando Mume

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